“A alegria
do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja. Apesar dos
numerosos sinais de crise no matrimônio – como foi observado pelos Padres
sinodais – ‘o desejo de família permanece vivo nas jovens gerações’. Como resposta
a este anseio, ‘o anúncio cristão que diz respeito à família é deveras uma boa
notícia’” (AL 1). Com esse olhar otimista é que o Papa Francisco abre a
Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris
Laetitia, que continuamos a ler.
Nos primeiros
parágrafos, à guisa de introdução, o Papa se dedica a situar o documento no
contexto eclesial e social contemporâneo, e termina com um convite: “Espero que
cada um, através da leitura, sinta-se chamado a cuidar com amor da vida das
famílias, porque elas ‘não são um problema, são sobretudo uma oportunidade’”
(AL 7), retomando a proposta sinodal.
O primeiro
capítulo, “À luz da Palavra”, apresenta uma exposição das mais ricas passagens
bíblicas que tratam do tema da família e do amor conjugal. Logo de início, Francisco
traz à tona a família como uma espécie de grande “moldura” de toda a Escritura:
“A Bíblia aparece cheia de famílias... desde as primeiras páginas onde entra em
cena a família de Adão e Eva... até as últimas páginas onde aparecem as núpcias
da Esposa e do Cordeiro” (AL 8). Dentre as inúmeras imagens usadas para
descrever a aliança entre Deus e seu povo, sem dúvida, a mais usada e mais
profunda é a imagem nupcial, muito frequente entre os profetas. O salmo 128/127
é paradigmático ao nos fornecer a imagem do amor na família.
No princípio
da criação já se encontra inscrito no coração humano o amor nupcial. Jesus retoma
esse desígnio primordial na controvérsia com os fariseus de Mt 19,1-12 e Mc
10,1-12. Os textos de Gn 1,27 e Gn 2,24 ressaltam a reciprocidade do amor e o
valor da fecundidade humana como ápice da vida conjugal e participação no ato
criador divino: “a capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por
onde se desenrola a história da salvação” (AL 11). Homem e mulher, no amor,
tornam-se “uma só carne”: “Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração
e a família” (AL 13). Cada filho gerado e acolhido na família visibiliza
concretamente esse amor humano-divino no qual é envolvida a família.
A família é
vista à luz da própria Trindade: “O Deus Trindade é comunhão de amor; e a família,
o seu reflexo” (AL 11). Tal afirmação ganha um alcance particular na
interpretação de são Paulo em Ef 5,21-33, onde interpreta o amor conjugal à luz
do mistério da união “esponsal” entre Cristo e a Igreja. Fundamental papel tem
a família nas origens do cristianismo e no tempo das perseguições, onde não
havia templos e a Igreja se reunia nas casas: “O espaço vital de uma família
podia transformar-se em igreja doméstica, em local da Eucaristia, da presença
de Cristo sentado à mesma mesa” (AL 15), retomando a prefigurativa imagem da
ceia pascal judaica, celebrada em cada casa, presidida pelo pai da família (cf.
Ex 12,1-14).
No Decálogo,
o mandamento “Honrar pai e mãe” aparece com um destaque: só ele é acompanhado
de uma promessa: prolongar a existência e ser feliz (cf. Ex 20,12; Dt 5,16)!
Lucas, no seu evangelho, apresenta Jesus como o perfeito modelo de obediência a
seus pais (Lc 2,51) e, mais, “exalta a necessidade de outros laços mais
profundos, mesmo dentro das relações familiares: ‘Minha mãe e meus irmãos são
estes: os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática’ (Lc 8,21)” (AL 18).
Apesar de
toda essa beleza, a história das famílias de ontem e de hoje é marcada pela “presença
do sofrimento, do mal, da violência, que dilaceram a vida da família e sua
comunhão íntima de vida e de amor” (AL 19), um verdadeiro “rastro de sofrimento
e sangue que atravessa muitas páginas da Bíblia” (AL 20), inclusive. Jesus conhece
bem essa realidade das famílias, e trata delas (cf. AL 21); assim, de fato, “a
Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstratas, mas
como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou
imersas em alguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho” (AL 22).
A realidade
do trabalho apresenta-se fundamental à vida das famílias desde os relatos da
criação até a pregação paulina (Gn 2,15; 3,19; At 18,3; 1Cor 4,12; 9,12; 2Ts
3,10; 1Ts 4,11). “O trabalho torna possível simultaneamente o desenvolvimento
da sociedade, o sustento da família e também a sua estabilidade e fecundidade”
(AL 24), por isso é preocupante a situação de desemprego e empobrecimento de
tantas famílias.
Cristo coloca
entre seus discípulos o imperativo “sempre novo” do amor do amor (Jo 15,13),
que deve ser vivido a seu exemplo. “Frutos do amor são também a misericórdia e
o perdão” (AL 27), destaca o Papa, e atualiza: “No horizonte do amor, essencial
na experiência cristã do matrimônio e da família, destaca-se ainda outra
virtude, um pouco ignorada nestes tempos de relações frenéticas e superficiais:
a ternura” (AL 28). Cada família, porém, pode contar com o auxílio seguro da
Trindade divina (AL 29) e com o exemplo concreto da Sagrada Família e sua
intercessão poderosa (AL 30) para, no caminho de cada dia, entre suas luzes e
sombras, não desfalecer nem desanimar em sua vocação! Deus aposta na família e
faz dela uma boa-notícia de vida e verdade, capaz de iluminar o mundo e
descortinar-lhe o seu verdadeiro sentido.
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