Pensando na liturgia da Quinta-feira
Santa, que já está bem próxima, é impossível não vir à mente a imagem de Jesus
lavando os pés dos seus discípulos. Cena forte, impactante, envolvente. Tanto é
que muita gente chama a celebração desse dia solene simplesmente de “missa do
lava-pés”. Quem nunca se imaginou tendo os pés lavados pelo padre nesse dia?
Muita gente chora quando é convidado ou até mesmo pego de improviso para esse
gesto. Você também?
Porém, o que existe de mais nesse
gesto?
Lavar os pés era a tarefa dos
escravos. Era um sinal de submissão à autoridade de outrem. Jesus que se abaixa
e lava os pés dos Doze sinaliza sacramentalmente sua vocação de servo da
humanidade, em obediência à vontade do Pai e coerência à sua própria palavra:
“Quem quiser ser o maior, se faça o servo de todos” (cf. Mc 10,44).
Oferecer água para lavar os pés era
significativo gesto de acolhida israelita. No calor escaldante do deserto, ao
ser recepcionado a uma casa para uma refeição, especialmente, lavar os pés e
perfumar a cabeça traziam um revigoramento para o corpo e para o espírito, uma
forma de descansar e refazer as forças. Em passagens específicas do evangelho,
esse gesto – curiosamente realizado por mulheres – se converte em oportunidade
de perdão (Lc 7,36-50) e anúncio profético da morte do Senhor (Mt 26,6-13; Mc
14,3-9; Jo 12,1-8).
No episódio da Última Ceia existe um
detalhe literário interessante. Diz que Jesus colocou uma toalha como uma
espécie avental para realizar essa tarefa, mas depois não o retira (cf. Jo 13,4.12).
O sinal, assim, fica mais forte e mais explícito. O lava-pés se torna símbolo
da vida inteira de Jesus, sempre a serviço da humanidade, em suas dores e
fraquezas, em suas mais deploráveis misérias, para resgatar a sua dignidade de
imagem e semelhança, de filhos e filhas de Deus.
Jesus lava os pés de todos, indistintamente.
Do resistente Pedro, do traidor Judas, dos calados outros dez. Não existe
diferença, todos “tomam parte com ele” (cf. Jo 13,8). Se Jesus já sabe, de
antemão, da traição de um, da negação do outro, da fuga de todos, isso não lhe
interessa. Os pecados e fraquezas não são obstáculo. Devem se converter em
oportunidade de revisão de vida e conversão.
“Dei o exemplo, para que, como eu fiz,
vocês façam também” (cf. Jo 13,15). E agora? Lavar os pés também? De quem?
Como? Por quê? Para que?
Antes e acima de tudo, lavar os pés de quem
não pode retribuir. Colocar-se a favor da vida, do cuidado com as situações de
maior vulnerabilidade. Fazer o bem não deve ter motivação que não seja a
solidariedade efetiva e a responsabilidade de um irmão que vê o outro que sofre,
e se move de compaixão. Em tempos de coronavírus, atitude fundamental.
Muitas são as formas de se fazer isso:
campanhas de arrecadação, divulgação de boas iniciativas, recusa das fake
news, objeção de consciência a leis injustas, valorização de pequenos
grupos (associações, cooperativas, ONG’s). “Fazer o bem e evitar o mal”, como a
sabedoria dos antigos ensina desde sempre.
A caridade é o imperativo cristão. É o
distintivo, que supera qualquer rótulo, e se estabelece como critério de
veracidade da fé. Amar a Deus é sinônimo de amar o próximo, fazendo-se próximo
de toda forma de vida ameaçada e vulnerável (1Jo 3,18; Lc 10,27.36). Só assim é
que se realiza o Reino de Deus.
Mais que um gesto litúrgico, o
lava-pés é um programa de vida. Você tem coragem de assumir?
Belíssimo texto! 👏
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