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A raiz humana da crise ecológica – Laudato Si’ V


Depois de apresentar um panorama da situação ambiental atual e recordar as luzes que a Palavra de Deus oferece à realidade do mundo criado, o Papa Francisco se dedica, no capítulo III da Encíclica Laudato Si’ (LS), a explorar o plano de fundo da crise ambiental: a verdadeira e profunda crise de sentido do ser humano.

O ponto de partida da reflexão de Francisco é o paradigma tecnocrático dominante: a deturpação do uso da boa tecnologia a serviço de interesses que visam meramente o poder, a exploração, o controle da liberdade; um ser humano que se pensa plenamente autônomo, mas, na verdade, “carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um lúcido domínio de si” (LS 105; 101-105).

Esse paradigma é “homogêneo e unidimensional [... onde] o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente” (LS 106), introduzindo toda a realidade numa lógica reducionista (cf. LS 107) e massificadora (cf. LS 108), orientando a economia e a política para o único serviço ao lucro de alguns, sem a preocupação com o desenvolvimento humano integral nem com a inclusão social de todos (cf. LS 109). O saber fragmentado coloca-se a serviço dessa lógica destrutiva ao “perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido que se torna irrelevante” e conduz ao erro à letal “perda do sentido da vida e da convivência social” (LS 110).

O Papa pensa a cultura ecológica como “um olhar diferente, um pensamento, umapolítica, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (LS 111), voltando ao um olhar integral sobre a realidade da vida, em busca de uma “humanidade autêntica, que convida a uma nova síntese” (LS 112), para que, na profundidade da vida, se reacenda a esperança no futuro (cf. LS 113) em vista de “uma corajosa revolução cultural” (LS 114).

A grande chave para entender a crise antropológica é o antropocentrismo moderno, que coloca o ser humano fora do seu verdadeiro lugar e “a razão técnica acima da realidade” (LS 115). Segundo essa forma de entender o ser humano, o mandamento de “dominar” (Gn 1,26) é entendido no sentido de posse e exploração, e não de administração responsável, o que realmente configura o ser humano como “imago Dei” (no mesmo Gn 1,26), e é a condição essencial que torna possível o domínio deste sobre o mundo (cf. LS 116). A tentação humana (e sua autodestruição) é esquecer-se de que é criatura entre e com as demais criaturas e colocar-se como seu senhor absoluto – tal posição compete somente a Deus e a mais ninguém! (cf. LS 117). Lembra, porém, o Papa, que há ainda outra tentação: uma “esquizofrenia permanente” que nega o real valor do ser humano. Assim, “um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um ‘biocentrismo’, porque isto implicaria introduzir um novo desequilíbrio” (LS 118), tão nocivo quanto.

Verdade é que “não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência” (LS 119), ou seja, uma grande ilusão. A defesa da natureza implica a defesa de toda forma de vida, ainda mais a vida humana – por isso permanece injustificável toda e qualquer tentativa de aborto (cf. LS 120). A grande esperança é, na verdade, “o desenvolvimento de uma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos” (LS 121) e promova a verdade da vida.

O relativismo prático é uma das mais graves consequências do antropocentrismo, pois só os próprios interesses tornam-se o centro da vida individual, formando uma verdadeira cultura, corrompida e cega, que absolutiza todo e qualquer interesse imediato e contingente e relativiza a verdade objetiva e os valores universais (cf. LS 122-123).

Nesse contexto, é urgente resgatar o valor do trabalho, a partir do próprio princípio da criação (cf. Gn 2,15: “guardar e cultivar”), como desenvolvimento humano e “humanização” da natureza; no fundo, falar de trabalho é falar de sentido da vida, é tratar do tipo de relações que o homem é capaz de estabelecer com os outros homens e com a natureza (cf. LS 124-125). O ideal monástico beneditino (“ora et labora”) oferece um sentido espiritual ao trabalho manual, o que “torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio ambiente, impregnando de sadia sobriedade a nossa relação com o mundo” (LS 126). O trabalho, entendido como realização e desenvolvimento pessoal humano, exige uma transformação social – investir nas pessoas e oferecer-lhes dignidade de vida é dar espaço a uma nova economia voltada à promoção do bem comum e da vida para todos (cf. LS 127-129).

Apoiado no Magistério eclesial, o Papa Francisco apoia o uso das (bio)tecnologias desde que estejam a serviço da vida do planeta, sendo toda intervenção na natureza uma ação responsável que promova o bem e a integração de toda a vida (cf. LS 130-133). O Papa chama a atenção, porém, para a devastação ambiental que se promove em favor dos latifúndios e oligopólios (cf. LS 134), e convida a “um juízo equilibrado e prudente” (LS 135) no debate científico e social, além de criticar os diversos movimentos ecológicos que defendem a vida animal e vegetal com toda a força mas ignora uma ética que promova a vida humana em sua integralidade (LS 136).

Somente evidenciando e esclarecendo o mistério dessa crise antropológica é possível chegar ao cerne da crise ambiental e a partir daí propor uma ecologia integral. Esse será o tema de nosso próximo pequeno artigo.

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