Ressurreições

 


Não é a primeira vez que me pego pensando solto no texto do evangelho deste Domingo na Oitava da Páscoa (Jo 20,19-29). É o clássico episódio de Tomé e sua necessidade infame de “ver para crer”. Mas, nas minhas divagações, tento fugir do óbvio e do trivial, para ler além da letra do texto. Numa observação não muito ortodoxa, penso que o texto trata de “ressurreições em escala”, em níveis sucessivos. Me explico.

O fato fundante da narrativa e seu grande plano de fundo é, sem dúvida, a ressurreição do Senhor, que constitui o coração da fé cristã. O Mistério Pascal de Jesus é o que lhe coroa a dignidade de Cristo, sendo atestado pelos seus seguidores como verdadeiro Filho de Deus. É a verdade irrenunciável a partir da qual se desdobram os textos evangélicos, fundamentalmente.

Aliás, há também uma ressurreição da fé dos discípulos. Se a memória não nos trai, todos os Doze abandonaram o Mestre na hora derradeira. O Quarto Evangelho fala da permanência solitário de um dos varões, o Discípulo Amado, que a pesquisa bíblica mais recente recusa ligar a uma pessoa determinada, permitindo a essa personagem literária enigmática povoar a imaginação e a sensibilidade teológica de quem quiser se aventurar a uma leitura mais profunda e atenta da narrativa evangélica. Fato é que esses homens e mulheres individuais, desanimados e frustrados, voltam depois de um tempo a se reunir em torno dessa Presença Misteriosa de Cristo, de modo diverso e superior em relação à sua experiência de convivência anterior. E que motivação seria suficiente para tanto? Esse grupo agora se torna destemido anunciador do evangelho de Jesus Crucificado e Ressuscitado, disposto até a derramar o próprio sangue por essa verdade de fé. Algo maravilhoso acontece, e não se sabe exatamente explicar o que é.

O injustiçado Tomé também tem de passar por um processo de ressurreição. Primeiro, precisa revisitar as palavras e ações do próprio Mestre, recuperar a memória do caminho percorrido, varrer os vestígios das Escrituras que anunciavam a intervenção divina, elencar novamente os critérios de sua adesão ao Senhor. É uma reviravolta pessoal, penosa, exigente. Ninguém muda do dia para a noite. Em segundo lugar, e não menos importante, é preciso retomar a credibilidade da comunidade e sua importância fundamental no processo de amadurecimento da fé. Os vínculos de pertença eclesial devem superar os laços puramente jurídicos. E mais ainda: a comunidade é sujeito verdadeiramente ativo no caminho de recepção e iniciação à vida cristã, e não um simples espectador passivo. Não se trata apenas de um lugar físico, mas constitui um ambiente teológico e espiritual, muito maior do que qualquer formalidade crua, ritual ou institucional. Na linguagem do Catecismo da Igreja Católica, é somente a partir do “nós” da comunidade que crê que “eu” posso dizer que creio como indivíduo. Nesse sentido se deve falar, de modo urgente, de uma ressurreição da comunidade cristã em sua missão como espaço do testemunho e a ambiência efetiva da fé cristã.

“Ressuscitar”, literalmente, é “ficar de pé”, como em prontidão para caminhar. Penso que em meio às incertezas deste tempo de pandemia, devemos buscar um caminho efetivo e amadurecido de ressurreição do ato de fé eclesial, num mundo marcadamente digital, pragmatista, hedonista e com fortes tendências ao descartável. E talvez a primeira pergunta a se fazer seja essa: a fé cristã ainda consegue se manter de pé nesse contexto mundial? Penso, modestamente, que sérias questões se impõem, buscando alternativas tanto para indivíduos, quanto para grupos e instituições. Vou traçar algumas delas em um enunciado um pouco mais rebuscado e depois traduzir numa provocação mais acessível.

Em que sentido se pode colocar a caminho um projeto de evangelização mais efetivo, baseado radicalmente no anúncio do evangelho de Jesus e em uma incisiva ação caritativa e misericordiosa? Como voltar à pobreza e à caridade da vida de Jesus?

Seria possível uma nova hermenêutica antropológica que recupere o homem singular em seu valor e dignidade? Qual o verdadeiro sentido da vida humana?

Como erguer uma ética em perspectiva inclusiva, num mundo pluricultural e multirreligioso, para além dos ditames de uma moral cristalizada em preconceitos tradicionais e que ultrapasse o reducionismo dos valores do processo de secularização globalizada? Como criar um mundo de verdadeiros irmãos?

O que me anima a esperança é que se erguem vozes e pensamentos em muitas direções, embora me sinta frustrado em perceber os minúsculos espaços de consideração e discussão de tantas preocupações relevantes. Ainda bem que a internet (até agora) aceita meus devaneios!

Não existem respostas prontas, felizmente. Tudo está a caminho. Acredito, porém, que a fé em Cristo, sincera e verdadeira, é capaz de ressuscitar o mundo!

Comentários

  1. Como suas palavras me fazem bem! Muitas de minhas inquietações são por ora, acalmadas pelas sábias colocações descritas em seus textos.

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  2. Meu querido irmão, que interpretação lindíssima do evangelho de ontem. Que texto e provocações. Parabéns, futuro cardeal da igreja. Att, Edson

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