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Um de nós



Nesses mais de trinta dias de isolamento social, tenho me dedicado a diversas atividades, tanto relacionadas a trabalho e estudo quanto a lazer. Além de rezar um tanto mais e ter mais tempo pra leitura, tenho me dedicado a assistir um pouco de TV e séries na Netflix (sim, acredite se quiser: sou uma pessoa normal). 

Na leitura, tenho buscado revezar entre estudos bíblicos e teológicos, formação religiosa e uma literatura mais livre. Tenho compartilhado aqui algumas dessas leituras, e já tem umas outras engatilhadas (umas já feitas e resenhadas, outras na fila).

Na TV e na Netflix tenho procurado alguma coisa que ajude a relaxar sem deixar de pensar construtivamente. Procurei no streaming de vídeos alguma coisa que unisse alguns gostos pessoais e encontrei uma junção interessante entre romance policial, humor e religião: a série Lúcifer (ainda inconclusa). Sim, ela já é batida na Netflix, mas eu não tinha visto ainda (somente Bojack Horseman, Sherlock, Friends – que ainda não acabei – Blindspot e o filme Os Dois Papas). E a produção me surpreendeu, em muitos aspectos. Queria destacar três impressões que ela me despertou.

1. A mitologia. Lúcifer conjuga uma série de mitos livremente, sem atacar ou desmerecer nenhuma visão religiosa. Faz isso com certa liberdade e humor nessa ficção, mas não vi nenhuma depreciação. Além de acrescentar alguns dados e interpretações muito particulares. Não vamos entrar aqui numa querela teológica, certo? Tudo corrobora para as idas e vindas do enredo. Mas, o que realmente chama a atenção é a antropologia subjacente, a imagem de ser humano que a série transmite como pano de fundo: a grande tentação humana é projetar em Deus suas desventuras e devaneios, quando tudo, na verdade, é responsabilidade de cada indivíduo. Sim, você é o único responsável por suas escolhas. E deve arcar com todas as suas responsabilidades. Até a visão de inferno é desconcertante: sou eu mesmo que me atormento com a minha culpa (procurando terapia em 3.. 2...). De certo modo, apresenta uma visão mais apaziguada e amigável tanto de Deus como do Diabo, e um pouco mais torturante sobre a própria existência humana. O que não deixa de ser uma verdade.

2. A questão fundamental. Essa visão antropológica se revela em um dos momentos mais esperados de cada episódio. O protagonista se volta para a pessoa e pergunta: O que você realmente deseja? E não, esta pergunta não é supérflua. Está no evangelho! Diante da discussão sobre o puro e o impuro, especialmente em relação aos alimentos, Jesus desenvolve um discurso pragmático e muito firme em Mc 7,14-23: “O que sai do homem, é isso que o torna impuro”. Essa é a chave interpretativa para o significado do bem e do mal nas ações individuais (pode conferir também Lc 6,43-45: “O homem bom, do bom tesouro do seu coração, tira o que é bom, mas o mau, do seu mal tira o que é mau; porque a boca fala daquilo de que está cheio o coração”). Sim, você é que escolhe o caminho da salvação ou da condenação. E a vida é bem assim: são os nossos desejos profundos que nos orientam, em todas as dimensões da vida (vocação, missão, família, comunidade, carreira, emprego, amizades, namoros, etc.).

3. A inquietação. Um dos episódios, pra mim, foi espetacular ao suscitar a seguinte pergunta: e se Deus fosse um de nós? (no enredo, o Diabo vive entre os humanos) Pra isso, ressuscitou uma canção de mais de 20 anos, mas ainda muito atual, One of Us, interpretada por Joan Osborne, que eu curtia muito nos princípios da minha adolescência, e não menos quando, ao cursar Filosofia e Teologia, me debatia com certas questões de fé. Clica aqui para a letra (https://www.letras.mus.br/joan-osborne/29618/traducao.html) e, para relembrar ou mesmo conhecer, aqui para o clipe no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=B4CRkpBGQzU). Não deixe de escutar essa música (um rockzinho de responsa, diga-se de passagem). Longe de reduzir a questão sobre o ser de Deus, essa música nos coloca diante da questão da Encarnação: como nos comportaríamos diante do humanizado rosto de Deus? Ecos em Mt 25,31-46, se quiser. De novo, não queremos acirrar os ânimos de uma batalha teológica. Mas dá o que pensar, não dá?

E você? O que anda lendo e assistindo? Compartilha com a gente nos comentários!

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