Espiritualidade ecológica – Laudato Si’ IX


Retomamos, então, o último capítulo da carta encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco – no artigo anterior falamos de uma educação ecológica que vise a transformação dos hábitos de vida e dos padrões de consumo em favor de uma ética planetária do cuidado.

O Papa propõe o caminho de uma espiritualidade ecológica (LS 216), partindo de uma verdadeira e efetiva conversão interior para uma real conversão ecológica, “que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial de uma existência virtuosa” (LS 217), tendo como modelo São Francisco de Assis (LS 218). A conversão ecológica, nessa perspectiva, traduz-se em conversão comunitária (LS 219) que gera atitudes de “cuidado generoso e cheio de ternura”, “gratidão e gratuidade”, “estupenda comunhão universal”, “criatividade e entusiasmo” e “responsabilidade” (LS 220) em uma “sublime fraternidade com a criação inteira”, uma vez que “Cristo assumiu em si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada ser” (LS 221).

Esse nível de conversão e espiritualidade, verdadeira atitude profética, “propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar e saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece, sem nos apegarmos ao que temos nem nos entristecermos por aquilo que não possuímos” (LS 222), em uma sobriedade libertadora que nos abre o verdadeiro caminho da felicidade (LS 223), da humildade (LS 224), da paz interior e da profundidade da vida (LS 225). A conversão ecológica é verdadeira atitude do coração (LS 226) que se transforma em bênção e bendição, gratidão e solidariedade (LS 227).

Na dinâmica dessa espiritualidade, somos chamados a uma experiência de fraternidade universal, que supera toda discórdia e divisão (LS 228), rejeitando a superficialidade das relações (LS 229), e superando “a lógica da violência, da exploração, do egoísmo” (LS 230), abrindo-nos ao “amor social” que gera uma verdadeira “cultura do cuidado” (LS 231). Esse dinamismo comunitário permitirá, então, a libertação da indiferença consumista e a abertura ao sentido de solidariedade (LS 232).

Ainda mais: “O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-lo em todas as coisas” (LS 233), segundo o testemunho de tantos místicos ao longo da história (LS 234). “Os sacramentos constituem um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida sobrenatural” (LS 235), pois são, e fato, sinais naturais sensíveis que remetem à realidade sobrenatural e invisível; por esse caminho, tão comum a nós, a natureza, mais do que nunca, torna-se caminho para Deus. De modo especial, na eucaristia, pão e vinho, “frutos da terra e do trabalho humano”, alcançam o máximo significado: “A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração” (LS 236).

Nesse dinamismo, o domingo ganha valor especial, pois, voltando ao princípio original da criação, permite o descanso contemplativo do homem face a natureza, e ainda recria os elos com o Criador e as criaturas, numa dimensão de alegre receptividade e gratuidade. “O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres” (LS 237).

Entendendo, pois, a Criação como um ato da Santíssima Trindade (LS 238), somos, como cristãos, convidados “pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária” (LS 239): amor-comunhão – toda a realidade deveria ser lida nessa chave! Em síntese: “Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade” (LS 240).

Finalizando o documento, Francisco apresenta Maria como símbolo do cuidado e da beleza, “Mãe e Rainha de toda a criação” (LS 241); ao seu lado, apresenta São José, protetor universal da Igreja, como modelo de trabalho generoso e serviço humilde, no lar da Sagrada Família de Nazaré (LS 242). Convida a todos, ainda, homens e mulheres de todo o planeta, a caminhar para a plenitude, “para a casa comum do Céu” (LS 243), cantando a esperança pelo triunfo da vida (LS 244). E conclui: “No coração deste mundo, permanece presente o Senhor da vida que tanto nos ama. Não nos abandona, não nos deixa sozinhos, porque Se uniu definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva a encontrar novos caminhos. Que Ele seja louvado!” (LS 245).

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