Falar
de fé no mundo de hoje é algo bastante complexo. Ainda mais porque a fé não é
um conceito reduzido que se possa explicar assim tão-somente de modo racional,
analítico ou sistemático. É preciso uma profunda experiência de Deus e um igual
mergulho no coração da humanidade para entender o que ela significa. Vamos
tentar um caminho.
O
nosso tempo, da chamada “pós-modernidade”, caracteriza-se por um pluralismo de
“experimentos” religiosos que genericamente chamamos de fé; uma busca de uma
profundidade mística sem compromisso com uma comunidade ou uma conduta ou
doutrina específica; quase como uma colcha de retalhos de satisfações
mistéricas ou algo assim. O problema desses experimentos místicos é que se
tornam um abismo quando não conseguem mais corresponder às expectativas
humanas. É bem mais uma proposta de “fazer Deus à nossa imagem e semelhança”,
do que o contrário. Que seja o fenômeno religioso constitutivo do ser humano é
dizer uma coisa; falar de uma experiência de fé cristã é completamente
diferente. Penso no terrorismo religioso promovido nesses dias – será realmente
uma motivação de fé a matança promovida pelos radicais islâmicos? Ou seria fé
autêntica a resistência dos cristãos refugiados por todo o Oriente Médio e
tantos outros assassinados?
Segundo
a Sagrada Escritura, “a fé é a certeza daquilo que ainda se espera, a
demonstração de realidades que não se veem” (Hb 11,1), mas que se nos garantem
pelo testemunho do próprio Deus e de tantos homens e mulheres que nos precedem
na comunidade que crê. A fé é a abertura à plenitude do ser, que buscamos na
profundidade de nós mesmos, onde Deus se esconde. Uma santa doutora da Igreja,
Sta. Catarina de Sena, fala da “cela da autoconsciência”, esconderijo onde Deus
habita em cada ser humano e a ele revela sua verdade, seu plano de amor. “Um
coração que saiba escutar” (cf. 1Rs 3,9) deve ser nosso pedido constante, a nós
que cremos e buscamos o caminho de Deus.
Nesse
sentido, para entender o significado profundo da fé, temos que olhar para Deus
e, igualmente, olhar para o ser humano. Entre esses dois sujeitos há uma
relação toda especial: o homem é “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27),
dotado da capacidade de conhecer e amar seu criador, e nisso reside seu ser
“pessoa”; é por isso mesmo capaz de amar seus semelhantes, de proteger e cuidar
do mundo circunstante – tal é também sua vocação e missão. O ser humano é o
único capaz de acolher a Revelação de Deus e de lhe prestar um culto, numa
relação recíproca de amor, apesar de todo pecado que estremeça essa relação na
(única) direção do homem para com Deus, porque este permanece sempre fiel.
Ensina o Catecismo da Igreja Católica que “a fé é a resposta do homem a Deus
que se revela e a ele se doa, trazendo ao mesmo tempo uma luz superabundante ao
homem em busca do sentido último de sua vida” (CIC 26). A acolhida da fé, nesse
sentido, muda a vida. Transforma todo o contexto das ações e reações humanas.
Faz compreender e enxergar a profundidade e a transparência do mistério de
todas as coisas. Faz também sentir a necessidade da partilha, quebra os muros
de uma pseudo-autossuficiência, desperta para a comunidade.
Jesus
Cristo, no mistério de sua Encarnação-Paixão-Morte-Ressurreição, ensina com o
próprio exemplo o que é ser humano. Restaurando a unidade perdida em Adão, ele
ensina que Deus e Pai; mostra que o amor é compaixão, é relação visceral, é ato
concreto em favor do próximo, seja ele quem for; educa para a rejeição do
pecado e a acolhida do pecador. Quem quer ser seu discípulo deve entrar na
escola da cruz, tornar-se capaz de “lavar os pés” dos desesperançados e, mesmo
na madrugada da dor e da desilusão, ter o coração aberto para contemplar e
acolher a luminosa manhã da ressurreição!
A fé,
para o homem que crê, para o discípulo de Jesus, torna-se, então, ao mesmo
tempo, ponto de partida, eixo e horizonte da vida. O caminho, apresentado pelo próprio Deus, não é
outro senão Ele mesmo, o Verbo que se fez carne (Jo 14,6); pelo batismo,
nascemos para a vida na fé, assumimos a vocação cristã, nos comprometemos a
entrar e participar da escola de Jesus – esse é o ponto de partida: uma assimilação progressiva do estilo do próprio Senhor;
os discípulos têm medo, tem dúvidas, tem curiosidades... dão respostas
acertadas e ao mesmo tempo não conseguem compreender o mistério do Mestre...
mas não deixam de caminhar – a fé é o eixo
da sua vida, que se vai esclarecendo enquanto eles estiverem no caminho; quem
se afasta não pode crer nem aceitar o maravilhoso de Deus em sua vida (cf. Jo
20,24s) – assim, a fé, como horizonte
da vida cristã, sempre recorda ao homem que este pode e deve se maravilhar com
a novidade de Deus, nunca se deixar levar pelo pessimismo, nem pelos modismos,
nem por qualquer apego (o pior desses talvez seja a uma falsa imagem de Deus,
que escraviza e torna amarga a vida, ao invés de libertar e dar nova cor e
beleza à existência).
Nunca
percamos de vista a perspectiva do caminho.
A vida de fé é uma grande caminhada, uma verdadeira peregrinação ao Santuário
do Senhor. A cada passo que damos, vamos descobrindo, no chão da vida, nossas
misérias, nossos limites, nossas potências, nossas motivações profundas. Se nos
pomos a caminho é porque já temos de antemão a certeza da chegada e do tesouro
que nos espera. Luzes e sombras vão se contrapor no caminho; encruzilhadas
esperarão de nós uma decisão sobre qual rumo tomar. Os magos caminhavam sob a
orientação da estrela do Oriente; nós, nas marcas do sangue do Cordeiro de
Deus.
Ótimo texto...para ótimas reflexões!!!
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