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O amor no matrimônio – Amoris Laetitia VI

 

Esse é o título do capítulo IV (n. 89-164) da exortação Amoris Laetitia, do Papa Francisco, que se dedica a realizar uma bonita reflexão sobre o significado do amor na vida do casal cristão, de forma bastante prática e concreta.

A partir da inspiração de 1Cor 13,4-7, o Papa descreve “algumas características do amor verdadeiro” (AL 90), manifestadas no cotidiano da vida da família. A paciência é a primeira característica, que conduz à aceitação do outro como ele é, num sentido de mútua misericórdia e verdadeira atitude de serviço, empregada em gestos concretos de amor e de bondade. É necessário curar a inveja para uma verdadeira apreciação sincera do outro, com seu próprio sonho de felicidade, sem ser arrogante nem se orgulhar, mas com um olhar de amabilidade, sem possessividade. Ao contrário, é com desprendimento, rejeitando todo tipo de violência interior, que se pode conduzir a relação a uma constante dinâmica de perdão e reconciliação, que torna a pessoa capaz de alegrar-se com os outros, sem fingimento.

Por isso, é necessário redescobrir o amor que tudo desculpa, apesar de fraquezas e erros; que confia, com sincera liberdade; que espera, em um caminho de busca de maturidade; que tudo suporta ante qualquer hostilidade que se apresente. Dessa forma, podemos afirmar, com Francisco, que, concretamente, “o ideal cristão, precisamente na família, é amor que, apesar de tudo, não desiste” (AL 119).

Vivendo nesse horizonte de amor, cada casal cristão é convidado a crescer na caridade conjugal, a partir da graça sacramental do matrimônio e à luz do mistério de amor da Trindade – comunhão e unidade, em um caminho progressivo e integrador. A aliança conjugal se expressa nessa construção mútua em comunhão, na fidelidade a um projeto de amor que dure para sempre, que gera uma união cada vez mais intensa, numa dinâmica profunda de amizade sincera, capaz de promover alegria verdadeira. E aqui, penso, o Papa apresenta uma bela definição de alegria, ancorado em Santo Tomás: “dilatação da amplitude do coração” (AL 126), ou seja, a capacidade de ampliar cada vez mais o horizonte do amor como centro de unidade da vida em todas as suas dimensões.

Assim, a caridade e a alegria conduzem ao encontro com a beleza, com a ternura. Isso transforma a pessoa por dentro, definitivamente, e leva a uma postura diferente diante da vida e dos outros: “O amor abre os olhos e permite ver melhor, além de tudo, quanto vale um ser humano” (AL 128). Eis o sentido fecundo do amor, que se aprofunda e renova até mesmo nas situações de sofrimento e de dor.

Visto assim, só é possível, verdadeiro e fecundo um matrimônio quando homem e mulher decidem unicamente casar-se por amor. Nada seria capaz de justificar uma união nesse nível de intensidade e reciprocidade senão o amor. Assim se torna possível “transformar dois caminhos em um só” (AL 132), tornar-se “uma só carne” (Gn 2,24). Esse amor assim radicado conduz a um movimento de crescimento e amadurecimento constantes a partir do diálogo e da sincera valorização do outro.

O amor conjugal, nessa visão, é capaz de integrar as pessoas num processo que visa a maturidade, num caminho pedagógico, auxiliado pela graça, de todas as dimensões da vida, com suas luzes e sombras: paixões, emoções, sexualidade, limites, renúncias, consciência. É claro que tudo muda durante esse caminho, por isso é necessário manter “viva dia a dia a decisão de amar, de se pertencer, de partilhar a vida inteira e continuar a amar-se e perdoar-se... o amor celebra cada passo, cada etapa nova” (AL 163) e, assim, se reinventa a cada dia.

Comentários

  1. A cada palavra que leio, percebo a quanto hoje algumas pessoas estão se distanciando do amor verdadeiro. Se relacionam por relacionar. E o quanto a falta de amor distância os casais.
    E quando há amor, as coisas são vividas da forma que foi bem escrito acima.

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  2. Que maravilhosa leitura! Obrigada, padre João.

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  3. Olá, único maior que Bento XVI, tudo bem? Estou com quase 6 meses de casado. Lembro sempre da sua homilia no dia do meu casamento. Alessandra e eu estamos tentando seguir esse horizonte de amor cristão. Obrigado pelo texto. Sabedoria com você é mato. Abraços e sua benção.

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