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A realidade e os desafios das famílias – Amoris Laetitia III




“O bem da família é decisivo para o futuro do mundo e da Igreja” (AL 31): com essas palavras o Papa Francisco abre o segundo capítulo da Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, apresentando a preocupação de toda a Igreja com o rosto presente e futuro da instituição familiar, tanto intra quanto extra eclesial.

O grande plano de fundo é a “mudança antropológico-cultural” (AL 32) contemporânea, o que os bispos latino-americanos em Aparecida chamavam “mudança de época” (DAp 44), uma “exasperada cultura individualista da posse e do gozo” (AL 33) e gera uma série de desvirtuamentos das relações familiares. O Papa convida a todos para uma “salutar relação de autocrítica” (AL 36), revendo nossa linguagem pastoral e, sobretudo, nossas formas de relação interpessoal, assumindo nossas dificuldades e colocando-nos em um caminho de verdadeiro discernimento e conversão, pessoal e pastoral.

Outra triste marca é a da “cultura do provisório” e do “descartável” (AL 39), não só no que se refere às coisas, mas às pessoas! “Precisamos encontrar as palavras, as motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar o íntimo dos jovens, onde são mais capazes de generosidade, de compromisso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com entusiasmo e coragem, o desafio do matrimônio” (AL 40), rompendo assim com a lógica narcisista desse desafiador cenário cultural.

Constata-se um “enfraquecimento da fé e da prática religiosa” (AL 43), que contribui para uma mais acentuada crise, tanto pessoal quanto social, e que se reflete nos diversos âmbitos de relações cada vez mais frágeis, e no desamparo de direitos básicos e fundamentais à constituição de qualquer família. Por isso, “devemos insistir nos direitos da família, e não apenas nos direitos individuais. A família é um bem que a sociedade não pode prescindir, mas precisa ser protegida” (AL 44).

A situação de inúmeros filhos nascidos fora do matrimônio, exploração sexual da infância, deterioradas situações familiares, meninos de rua (cf. AL 45), famílias migrantes (cf. AL 46), filhos com deficiência (cf. AL 47), eutanásia e suicídio (cf. AL 48), exige da Igreja “dedicar especial atenção em compreender, consolar e integrar, evitando [...] sentirem-se julgadas e abandonadas precisamente pela Mãe que é chamada a levar-lhes a misericórdia de Deus” (AL 49). 

O chamado ao amadurecimento de cada família passa pelo enfrentamento sincero e corajoso de sérios desafios que invadem cada vez mais os lares: dependência da TV e outros meios de comunicação, ansiedade (cf. AL 50), toxicodependência e jogos de azar, violência doméstica (cf. AL 51). Diante de cada situação desafiadora, invoca-se a luz de Deus para um justo discernimento das ações necessárias e possíveis, que integrem a família na superação de cada dificuldade e em torno de seu centro único e insuperável: o amor.

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