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Tesouro em vaso de barro

A liturgia da festa de hoje, São Tiago, Apóstolo, traz essa referência da segunda carta aos Coríntios, que me faz pensar muito sobre a realidade da vida humana e a proposta da vocação cristã.

“Temos esse tesouro em vasos de barro, para que o extraordinário poder seja de Deus e não nosso” (2Cor 4,7). Na lógica original do texto, Paulo está discorrendo sobre o ministério apostólico, cujo centro se encontra na pregação do evangelho, o anúncio da salvação de Deus pelo mistério pascal de Jesus Cristo. O apóstolo discorre longamente sobre a superação da antiga aliança por Cristo, e mostra que a autoridade do ministério apostólico está em nada reter para si – nem a própria vida, frequentemente exposta a perigos e ao ridículo –, mas em fazer tudo para que todos cheguem ao conhecimento da boa nova divina.

Mas podemos ir além do texto. Por isso que ele é Palavra de Deus.

O texto nos convida a uma lucidez antropológica, se assim posso dizer. Traz à tona a consciência de nossa condição de criatura, nossa finitude “original”, nossa limitação. Somos pó, viemos do barro, como ilustra o mito criacional do livro do Gênesis. Viemos do húmus, do mais frágil da terra – por isso somos humanos, e talvez deveríamos ser sempre humildes. Toda arrogância e prepotência deveriam se curvar ante essa pequenez intrínseca à nossa natureza.

O barro, porém, é extremamente volúvel, adaptável. Ele existe para a transformação. Nisso temos uma referência maravilhosa: ninguém nasce pronto, estamos todos em mudança e transformação. Todos podemos mudar, crescer, amadurecer. É o movimento natural da vida. É o grande tesouro escondido no coração humano. Os outros animais não se transformam, não se tornam – são o que são, simplesmente. A complexidade da criatura humana é radicalmente diferente: ninguém nasce isto ou aquilo; não há lugar para fatalismos – somos quem podemos e queremos ser. É a dimensão do sonho, do projeto e da realização. É o que nos faz humanos, na raiz, de verdade.

A vida cristã não é diferente. É um contínuo processo de discernimento, renovação, transformação, amadurecimento da fé e do amor. Deus lança luzes sempre novas sobre a nossa existência, para que possamos corresponder cada dia melhor aos seus apelos. E para nos tornarmos sinais mais eficazes da sua presença. Isso, pra mim, é o mais curioso: Deus quer contar conosco – Ele quer precisar de nós! É um mistério profundo, insondável, maravilhoso! Esteja disposto e avance sem medo!

Comentários

  1. Que texto BRILHANTE. O 4 parágrafo é demais. Que análise fenomenal.

    Forte abraço, Francisco II

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